quarta-feira, 18 de março de 2009

UM RADAR HUMANO NO SÉCULO XVIII (1ª parte)

UM RADAR HUMANO NO SÉCULO XVIII - 1ª parte
(tirado de "Histórias Marítimas Extraordinárias" de Robert de La Croix, conto XVII, editado pela primeira vez em 1996 em França.)
Um naufrágio simboliza o fracasso do navio. É também, por vezes, o fracasso do homem, que não conseguiu aperceber-se a tempo do baixio ou da rocha sobre os quais se ferirá mortalmente o casco.

A invenção do radar, que permite ver o invisível, trará um importante elemento de segurança para os navegadores.
Cerca de um século e meio antes, um homem pretendera possuir um estranho poder.
Precisamente, o de detectar, a mais de uma centena de quilómetros de distancia, um navio ou uma costa.

Eis esse homem na ponte do navio Le Fier, que ia de Port-Louis, ilha de França (hoje ilha Maurícia), até Lorient. Um dos oficiais do Fier, o primeiro-tenente Dufour, olha para esse homem com curiosidade. Este tem o aspecto de um modesto empregado ou de um peque no burguês, com um rosto comum, com quarenta insignificantes anos e contudo, representa simultaneamente um enigma e um sonho.

Primeiro um enigma, porque esse passageiro possui um dom extraordinário: distingue a dezenas de léguas um navio ou uma costa invisíveis para os vigias mais experimentados e munidos de monóculos.

Em seguida um sonho. O dos navios tendo a bordo marinheiros com os mesmos poderes que este estranho passageiro. Então, nunca mais encalhariam numa costa desconhecida; nunca mais sofreriam um abalroamento na bruma; nunca mais haveria naufrágios sobre os rochedos. E, nas unidades de combate, a possibilidade de detectar a presença do inimigo, de o perseguir, de o atacar de surpresa.

Foi no dia 16 de Março de 1784 que o passageiro se aproximou de Dufour, quando este ultimo estava de quarto no tombadilho.

- Sabe, por certo, senhor – dissera o passageiro – que se encontra a trinta léguas de terra? Com este vento de sul arriscamo-nos, esta noite, a ser desviados para a costa, se não nos afastarmos.

O primeiro-tenente, surpreendido, voltou-se para o passageiro e perguntou-lhe com um ar trocista:

- O senhor é marinheiro?

- Já fui, durante uns anos, na Companhia das Índias.

- E em que baseia a sua afirmação?

- Antes de lhe responder, gostaria que se assegurasse da veracidade do que acabo de lhe dizer.

Intrigado, Dufour desceu a sala de navegação e debruçou-se sobre a carta marítima. A partir do
último ponto, traçou a rota do navio tendo em conta a velocidade e a derivação calculada. Verificou que o Le Fier se encontrava mesmo a umas trinta léguas da costa de África, como anunciara o passageiro.

- O senhor possui assim uma visão tão apurada? – perguntou Dufour a este último, estupefacto.

- Tenho, de facto uma boa visão, mas não o suficiente para descobrir um navio ou uma costa invisíveis.

- Mas então como é que faz?

- Baseio-me na observação de certos fenómenos. Queira desculpar-me por não poder adiantar mais nada. Reservo o primor da minha descoberta ao Ministro da Marinha, o Marechal de Castries. É esse mesmo o objectivo da minha viagem a França.

E o passageiro rodou sobre os calcanhares.

***

Foi em 1770 que Etienne Bottineau chegou a Port-Louis, na Ilha de França. Começara a navegar como aprendiz de piloto com a idade de quinze anos (começo relativamente tardio; muitos marinheiros embarcam como grumetes com oito ou nove anos).
Bottineau abandonou a navegação para ocupar um lugar em terra, nos escritórios do rei. Só abandonava o seu trabalho para longos passeios à beira-mar. Passeios sempre solitários. Andava lentamente, como se meditasse. Por vezes, parava, olhava fixamente a linha do horizonte, por muito que o mar estivesse deserto.
Sofria então uma estranha metamorfose. O seu rosto crispava-se, como sob o efeito dum mal-estar, impressão que acentuava ainda a rigidez do corpo. Pensavam que ele fosse cair, vítima de um ataque. Depois, após cinco ou dez minutos, as suas feições distendiam-se. Os seus lábios desenhavam um vago sorriso e Bttineau ia para sua casa.

Um dia pediu para falar com o governador da Ilha de França, o senhor de Souillac, sobre um assunto importante. Este não tinha por hábito incomodar-se por um simples empregado. Fê-lo ser recebido por Foucault, o seu intendente.

- Queria prevenir o senhor Souillac – disse Bottineau - que uma esquadra de três unidades se dirige para Port Louis. Se os ventos continuarem favoráveis, serão avistados antes de três dias.

Foucault franziu o sobrolho.

- Como é que você sabe?

- É difícil explicar em poucas palavras, senhor intendente. Senti a sua aproximação por causa de alguns indícios.

Foucault esteve quase a perguntar quais poderiam ser esses indícios, mas não quis perder mais tempo com uma cabeça manifestamente desarranjada. Levantou-se e mandou embora o oportuno.

Três dias mais tarde, saindo da sua casa, foi abordado por Etienne Bottineau.

- Você outra vez! – disse Foucault irritado.

- Só uma palavra, se faz favor. Permito-me fazer-lhe ver que as minhas previsões estavam certas. As três unidades que lhe anunciei já chegaram.

Foucault permaneceu silencioso antes de murmurar, como para si mesmo: « Mas… é verdade.»

Depois acrescentou, irónico:

- O acaso fez bem as coisas.

- Tomarei a liberdade de lhe remeter um bilhete quando me for possível fazer novas observações – disse Bottineau , nada perturbado.

- Como queira – respondeu Foucault.

E afastou-se, esperando não voltar a ver aquele tagarela.

A sua esperança foi em vão. Quinze dias depois, recebeu um bilhete de Bottineau anunciando a chegada de quatro embarcações antes de dois dias.

- O homenzinho quer que falem dele – pensou Foucault.

Por curiosidade, perguntou aos vigias, que observavam o largo a partir das colinas que rodeavam a cidade, se eles haviam avistado algumas velas. Os vigias perscrutaram o mar com os seus monóculos: o mar encontrava-se deserto.

E assim continuou no dia seguinte. Mas na madrugada do dia seguinte, quatro pontos negros apareceram no horizonte. À noite, quatro unidades ancoraram em Port Louis, como previra Bottineaul.

Desta vez, Foucault, impressionado, advertiu o governador. O visconde de Souillac encolheu os ombros.

- Esse Bottineaul deve ter ligações com pescadores. Ou então inventou algum monóculo mais possante do que os nossos. É preciso tirar isso a limpo. Ou talvez o acaso tenha ajudado uma segunda vez. Vamos ainda esperar.

Souillac esperou uns quinze dias. Desta vez, Bottineau predisse a chegada de uma fragata muito antes dos vigias.

- Curioso… - disse Souillac.

Não tirou ainda qualquer conclusão sobre os pretendidos poderes de Bottineau. A questão intrigava-o e divertia-o, assim como começou a intrigar e divertir os habitantes de Port-Louis. Apontavam a dedo o homenzinho apagado e silencioso, que não parecia nada afectado pela curiosidade que suscitava.

Bottineau, tornou-se, pouco a pouco uma espécie de celebridade. Perguntaram-lhe se podia prever também o tempo e o futuro. Bottineau não se zangava e contentava-se em sorrir. Imperturbável, continuava a enviar bilhetes a Souillac, que ficava sempre de reserva, ainda que a sua desconfiança em relação a Bottineau se tivesse atenuado. Este último não parecia sentir-se afectado nem com a desconfiança nem com a zombaria dos habitantes do Ilha de França confessará mais tarde que sofrera, com efeito, com os sarcasmos de que fora objecto).

Por vezes, um marinheiro ou um soldado abordavam-no.

- Barcos à vista, senhor Bottineau?

- Precisamente. Três dentro de dois dias.

- Aposto um luis em como não chegarão.

Bottineau aceitou a aposta. E ganhou-a. Excepto quando uma acalmia retardava os barcos ou quando estes passavam ao largo sem parar em Port-Louis. «Pude assim ganhar uma soma
considerável», dirá Bottineau.

Pouco a pouco, conseguiu suscitar o interesse e a simpatia de Genu, o seu superior hierárquico, do procurador do rei, Lebras de Villeviderne, do capitão de infantaria Trebont. Essas pessoas
intervieram junto do governador. Ettiene Bottineau, asseguraram, não era um impostor. Dispunha de um poder singular, mas bem real.

Souillac acabou por convocar Bottineau. Ele prometeu-lhe escrever ao marechal de Castries, o ministro da Marinha. Talvez este lhe concedesse uma pensão em troca do seu segredo. Castries respondeu que, antes de tomar qualquer decisão a respeito de Bottineau, desejava que este realizasse uma série de observações num espaço de oito meses, sob o controlo das autoridades. Bottineau aceitou, com a condição de não ser vigiado e de poder usufruir de plena liberdade de movimentos.

( continua..)

3 comentários:

Fernando Gonçalves disse...

O Luís Guerra merece um cerveja mas tem de contar o resto da história.

lima golf disse...

eh, eh,consegui o meu primeiro Objectivo...uma cerveja!!!

tati disse...

Então eu publicarei "os Lusíadas"!!!