(continuação – 3ª parte)
O J.C.Cousins continua a fender as águas, ligeiramente inclinado sobre o estibordo, com as velas bem içadas, sem desviar a sua rota um grau sequer.
Perante aquele absurdo suicídio do navio, agarravam-se á ideia de esperar um acontecimento imprevisto, uma espécie de milagre, como por vezes acontece no mar: uma brusca rajada que poderia afastar a escuna dos recifes, uma vaga profunda que a arrastasse para longe de paragens perigosas.
Os refifes estavam a cerca de 500 metros…400 metros…
O J.C.Cousins prosseguiu o seu rumo implacável.
Nada o podia já salvar agora.
Era o fim. Um fim que parecia irreal e cujas imagens são descompostas, com um filme rodado em câmara lenta. Os mastros tremiam. Inclinavam-se para a frente. As velas drapejavam e dobravam-se umas sobre as outras. O casco continuava a avançar e, curiosamente, tinha-se a ilusão que os próprios mastros ficavam no lugar. Essa deslocação durou um, dois minutos. Depois, a escuna fez uma meia volta sobre si própria, encaixou-se no recife e, em breve, não era mais de um monte de tela de madeira, um caos negro e branco, qualquer coisa de indefinível, cujo aspecto trágico é desenhado pelo Sol brilhante e o céu azul.
*
Do cabo Canby, os vigias haviam seguido, estupefactos, o extraordinário naufrágio do J.C.Cousins. Tinham alertado os guarda-costeiros da estação de salvamento mais próxima. Um escaler foi descido, de repente, ao mar.
A aparição do escaler de salvamento naquele tempo calmo e naquele mar de óleo suscitou o espanto dos marinheiros que cruzavam a baía e que não haviam visto o drama. Pensavam que um navio começara a arder ou que alguém caíra à água. Tratava-se de uma outra coisa que os próprios salvadores não conseguiam explicar. Pelo menos, esperavam ficar a conhecer a verdade do acontecimento pelos náufragos do J.C.Cousins, que imaginavam estar a nadar á volta dos destroços.
A aproximação ao espigão de Clatsop foi fácil para o escaler de salvamento pelo fraco calado. Evitou os bancos e pôde aproar a uma pequena enseada, não longe do local do naufrágio.
Os salvadores acorreram ao navio destruído e esforçaram-se primeiramente para o desembaraçar das velas que cobriam a ponte. Esperavam descobrir os marinheiros que podiam estar feridos ou enfiados debaixo dos amontoados de tela e alavancas quebradas. Ergueram uma vela triangular, por baixo da vela grande, uma verga. Procuraram, chamaram e não encontraram nada.
- Devem ter abandonado o navio num escaler – disse o guarda-costas.
- Então, não deve estar longe – respondeu um dos camaradas.
O escaler não estava longe, com efeito. Estava no seu posto, na popa, quase intacto, apesar de algumas avarias nos bordos.
- Então partiram na canoazinha – disseram ainda.
A canoazinha foi descoberta, esmagada sob o amontoado de cordas.
Os salvadores visitaram o interior da escuna. Tiveram de derrubar a golpes de machado a porta da câmara, que estava bloqueada.
Ainda uma ou outra vez chamaram.
Ninguém.
Uma única explicação para a ausência da tripulação: Zeiber e os seus homens, vendo o naufrágio fatal, haviam saltado para o mar. Nesse caso, teriam chegado à costa. Não tardariam a encontrá-los.
Os salvadores exploraram o cabo Adams. Alguns coelhos fugiram sob os seus passos. Algumas aves marinhas esvoaçaram. Chamaram, bateram os arbustos que se cruzavam nos bordos dos rochedos.
Nenhum sinal dos náufragos.
Os rostos dos salvadores ensombraram-se. Os náufragos podiam ter sido arrastados pela corrente. Sem dúvida poderiam ter nadado para o largo, esperando socorro.
O escaler de salvamento afastou-se dos recifes, foi ao longo da costa a velocidade reduzida, seguiu a direcção da corrente. Sobre a água, nada mais havia do que ramos, algas, detritos sem interesse. De tarde enquanto as buscas prosseguiam, investigadores procederam uma busca aos destroços. Sendo a avaria do leme a primeira hipótese que se impunha, examinaram em primeiro lugar, a ponta do leme de direcção, as ferragens, a transmissão. O leme e os seus comandos funcionavam normalmente.
Desconcertados, os investigadores questionaram-se então se não seria necessário procurar a explicação do naufrágio, não nos destroços, mas na sua tripulação.
*
Alonso Zeiber era bem conhecido em Astoria. Tinha reputação de ser um bom marinheiro, um pouco invejado pelos seus confrades. Gostava de beber, mas nunca fora visto a subir a bordo em estado de embriaguez. A sua tripulação era composta por homens de experiencia, com prática em todas as tarefas de pilotagem, conhecendo perfeitamente o estuário da Columbia. Quanto à escuna, mantida num cuidado quase maníaco, encontrava-se sempre em bom estado de funcionamento.
Questionavam todos os que haviam visto na véspera da sua partida. Ninguém notara nada de anormal no seu comportamento.
A 6 de Outubro, o J.C.Cousins ancorara durante a noite nas proximidades de Mary Taylor, um rebocador especialmente afecto a pilotagem dos vapores. Os seus homens haviam sido os últimos a ver o J.C.Cousins antes do drama. Interrogaram-nos.
- Pudemos observat a escuna – disse o comandante do rebocador. – Saiu de perto da minha embarcação durante a tarde do dia 6, esperando as correntes de maré que lhe permitissem transpor facilmente a barra. Zeiber chegou a fazer-me uma saudação amigável e disse-me algumas palavras que não compreendi. Sem dúvida uma das eternas piadas sobre os que “dão à manivela” e sobre os nossos supostamente cobertos de suor.
- Durante quanto tempo andou assim ás voltas?
- Até às 17 horas, mais ou menos.
- Onde se encontravam vocês nessa ocasião?
- Frente ao cabo Ilwaco.
- Que rota seguiu então?
- Virou a Oeste e desapareceu no horizonte. No crepúsculo. Fiquei surpreendido por ver o J.C.Cousins voltar para junto da costa. Conclui então que não se tinha apercebido do veleiro de três mastros que devia pilotar e que esperava pela aurora para partir de novo.
- Foi então que ele ancorou de novo, perto de vocês?
- Sim, a quatrocentos ou seiscentos metros.
- Tem a certeza que se tratava do J.C.Cousins?
- Absolutamente certo. Não havia luar, mas a noite estava suficientemente clara para se reconcer a silhueta característica da escuna. Não era possível qualquer dúvida, na verdade.
Insistiram.
- E tanto durante a tarde, quando o J.C.Cousins circulava nas proximidades do vosso rebocador, como à noite, quando ele voltou a ancorar perto de vocês, não repararam nada de anormal?
- Que quer dizer?
- Teria uma avaria na mastreação, por exemplo? Mantinha-se na sua rota?
- Uma avaria que justificasse o seu regresso? É possível. Mas como já afirmei, quando ele voltou já era noite. Se houvesse uma avaria, ela não devia ser muito grave, uma vez que Zeiber partiu logo pela manhã e rumou ao largo.
- Vocês viram a escuna dirigir-se ao espigão de Clatsop?
- Não. Voltei a Astoria para procurar um vapor.
Os homens da tripulação confirmaram as declarações do seu comandante. Um deles, que estava de quarto naquele momento, viu a escuna partir de madrugada. Levava todas as velas içadas e afastou-se rapidamente.
O diário de bordo, que foi reencontrado intacto sob os destroços, apenas continha referencias práticas: rota, vento, pressão barométrica. O último registo datava do dia 7, de manhã: «partida às 8 horas, Rumo oeste».
Havia ali uma contradição em relação ao homem do rebocador, segundo o qual a escuna deixara o seu ancoradouro ao amanhecer, portanto, bastante antes da hora registada no diário de bordo.
Como explicar aquela contradição? Um numero mal escrito, um oito em vez de um cinco? Era possível. Um erro de Zeiber? Era menos provável. Ou então este só mencionara a hora que efectivamente dirigia o veleiro de três mastros francês.
Deixaram para mais tarde a solução deste enigma, aliás secundário. Voltaram à causa do naufrágio. Uma vez que não podiam incriminar o estado da escuna, pensaram numa falha humana. Mas qual?
Supuseram – era necessário supor tudo – que ocorrera uma rixa a bordo por qualquer razão, embriaguez ou disputa. Examinaram minuciosamente a cabina, o refeitório dos oficiais, os aposentos da tripulação. Tudo ali estava em ordem. Não descobriram qualquer tipo de luta. É verdade que esta podia desenrolar-se na ponte. Os corpos dos homens mortos ou feridos teriam oscilado sobre a amurada e caído e o J.C.Cousins teria continuado sozinho a sua rota, em direcção aos recifes.
- Há qualquer coisa que me preocupa – disse um inspector. – Suponhamos que a tripulação tenha desaparecido, por qualquer razão que seja. Nesse momento a escuna ficou entregue a si própria. Vocês acreditam que, privada de timoneiro, ela possa ter continuado uma rota fixa sem ziguezaguear, sem mesmo bordejar, mesmo que fossem alguns graus?
Uma objecção de peso. Contudo os acasos do mar eram grandes; era possível que a escuna, sem ninguém ao leme descrevesse um arco de círculo, depois tivesse seguido uma rota diametralmente oposta à primeira, não mais de bombordo, mas, desta vez, a estibordo.
Decorreram duas semanas.
O inquérito parou.
Nenhum corpo fora descoberto.
Este naufrágio sem náufragos parecia de tal modo inverosímil que supuseram que os homens do J.C.Cousins não estavam mortos. Hipótese absurda? Mas tudo era absurdo naquele extraordinário acontecimento de mar e não tinham o direito de negligenciar o menor indício.
Informações das famílias dos desaparecidos não deram muito resultado. Zeiber e os cinco membros da tripulação eram solteiros e apenas possuíam pais em lugares longínquos. Interrogados, estes declararam que não haviam visto nenhum dos desaparecidos deste naufrágio. E, contudo, como teriam saído de bordo? O escaler e a canoazinha, já o vimos, haviam permanecido na escuna.
Um transbordo para outro barco? Se tivesse acontecido, poderia ter-se fixado o momento: quando a escuna cessara de se dirigir ao largo para iniciar a navegação que a iria conduzir à costa, essa mudança de rumo seria explicada pela ausência da tripulação.
O inquérito seguiu outra orientação. Procuravam agora o barco no qual teriam embarcado os homens da escuna.
Os guardas costeiros do cabo Canby não forneceram qualquer informação útil. Apenas haviam verdadeiramente observado o J.CCousins a partir da sua mudança de rumo. Alguns barcos tinham-nos visto, sem dúvida, mas nenhum que lhes parecesse suspeito. Tratava-se, para a maior parte deles, de barcos pesqueiros. (continua)
Nenhum sinal dos náufragos.
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