quarta-feira, 1 de abril de 2009

UM RADAR HUMANO NO SÉCULO XVIII - 3ª e última parte

UM RADAR HUMANO NO SÉCULO XVIII - 3ª e última parte

(continuação – 3ª / última parte)

Sente que Bottineau lhe pede o seu apoio, mas ele não quer e não pode comprometer-se com uma questão que, de resto, não é da sua competência
Despediu cortesmente o seu visitante com vagas promessas.
Perante esta solidão, Bottineau, num momento desencorajador, reagiu.
Os segredos da sua nova ciência, esta “nauscopia”, chamada a alterar os métodos de navegação, serão revelados ao público. Decide-se mandar imprimir, à sua custa, uma obra que, espera, chamará a atenção, dos indiferentes e convencerá os incrédulos. Iria ser então conhecido o segredo de Bottineau?
Abramos o livro. Bottineau conta, antes de mais nada, as circunstâncias da sua descoberta e apresenta a relação dos seus sucessos.
Depois, passa às explicações: «Quando uma unidade se aproxima de terra ou de outro barco, produz-se um meteoro de natureza particular». Qual é esse meteoro?
«Os vapores voláteis, encerrados no seio do mar, escapam-se através das esteiras e elevam-se em rebuliço para compor um vasto invólucro que avança com ele».
E de onde vêm esses «vapores voláteis»? Escutemos ainda Bottineau: «O vasto numero de animais, de aves, de produções vegetais, de minerais, decompõem-se no seio da água, produzem uma fermentação continua da matéria (…) Quando o mar é posto em movimento por uma tempestade ou por uma massa activa (um navio, por exemplo), os vapores voláteis escapam-se das profundezas e elevam-se como fumaça, compondo um vasto invólucro em redor do barco. Esse invólucro avança com ele e aumente a cada momento por causa das novas emanações».
Bottineau precisava que esses vapores se confundiam geralmente com a atmosfera, mas, a partir do momento em que o navio atinge uma posição em que ele se mistura com outros vapores homogéneos, tais como os que se escapam da terra, apercebemo-nos que essa nuvem adquire consistência e cor, devido à mistura das duas colunas opostas».
Por outras palavras, o navio fica rodeado por uma espécie de nuvem que, encontrando uma outra nuvem, se tornaria visível a um observador experimentado.
«Toda a minha ciência», afirma ainda Etienne Bottineau, «reside na capacidade de seguir a aparição desse meteoro, (…) Para estas observações não é necessário qualquer telescópio ou instrumento matemático, os olhos são suficientes».
Bottineau esperava que a publicação da Nauscopia chamasse a atenção sobre ele. O director do Journal General de la France, o abade de Fontenay, falou, com efeito, para denegrir Bottineau, cujo livro não suscitou nele senão “menosprezo e escárnio”. Não eram navios no mar que Bottineau vira, mas «castelos nas nuvens».
É o inicio de uma campanha de difamação que o infeliz Bottineau, já deprimido pelo silencio do marechal de Castries e a reserva de Bernardino de Saint-Pierre, suporta mal. Protesta, grita contra a perseguição. O abade de Fontenay continua os seus ataques. Bottineau ameaça instaurar-lhe um processo. A polémica agrava-se ao redor deste homem bizarro, vindo de uma ilha longínqua, que tem a pretensão de ver navios por detrás do horizonte. Uns gritavam perante a impostura. Outros admitem que a teoria e as experiencias de Bottineau podem abrir novas perspectivas à ciência. Entre estes últimos, um médico militar da guarda do conde de Artois, que também é físico. Acaba de publicar um tratado de óptica no qual critica as teorias de Newton sobre a luz. A «nauscopia» intriga-o. Implica, sem dúvida, uma nova hipótese de da propagação dos raios luminosos. O nome desse médico? Jean-Paul Marat, o futuro “amigo do povo”.
Além disso, Marat interessa-se pelas coisas da navegação. Segue os trabalhos dum dos seus raros amigos (tem um carácter difícil), Abraham Breguet, nascido na Suíça como ele, o relojoeiro que vai pôr em ordem um cronómetro da Marinha. Marat privilegia, por conseguinte, a importância da «nauscopia» para os navegadores.
Há uma outra razão para o interesse e a simpatia que Marat nutre por Bottineau. Este é uma espécie de perseguido. A ciência oficial e as pessoas no poder consideram com indiferença ou com despreza a “nauscopia”. Ora ele, Marat, sofre também por causa da atitude dos membros da Academia das Ciências a seu respeito. É preciso dizer que o comportamento de Marat não facilita nada as coisas. Contra os seus detractores, utiliza injúrias, vias de facto e até ameaças de duelo!
É Marat que aconselhará Bottineau a instaurar um processo ao seu principal detractor, o abade de Fontenay. É ainda Marat que enviará dois exemplares de Nauscopia a algumas personalidaddes, na Inglaterra, sem qualque resultado aparente, aliás. É talvez também sob seu impulso que Bottineau terá efectuado experiencias no porto de Brest. Brenardino de Saint-Pierre faz alusão às suas experiencias no registo das suas conversas com Bottineau e afirma que estes haviam falhado.
Parece, finalmente, que a protecção desordenada de Marat não foi nada benéfica a Bottineau. Aliás, Marat abandonará, pouco a pouco, a ciência pela actividade política e o autor da “nauscopia” perderá o seu último protector.
Minado pele decepção e pela incompreensão dos seus compatriotas, Etienne Bottineau morreu numa data que se pode situar por volta de 1788.
Levou consigo o segredo da “nauscopia”.
«Se devo acabar a minha vida com decepção e humilhação», escrevera Bottineau, «antes de ter podido explicar a minha descoberta, o mundo será, sem dúvida, privado durante um certo tempo de uma arte que teria feito as honras do século XVIII».
Sobre a natureza desta arte ainda se interrogam as pessoas, O caso de Etienne Bottineau representa um enigma. Não se pode falar de impostura. Os testemunhos das suas visões são demasiado numerosos para que se possa falar de ilusão colectiva, tanto mais que esses testemunhos provêm de pessoas, a priori, incrédulas e nada suspeitas de indulgência face a Bottineau.
Seria ele dotado de um dom excepcional? A recolha de factos históricos refere o caso de um siciliano capaz, a partir do promontório de Marsala, de distinguir os navios que entravam no porto de Tunis, a uma distância de duzentos quilómetros. Os anais médicos citam alguns casos parecidos. Por exemplo, o de uma inglesa que vivia em Suffolk, no decurso de 1950. A sua acuidade visual era duas vezes mais forte do que um indivíduo normal.
Admitindo, todavia que Bottineau fosse também dotado duma tal visão, o alcance desta teria sido de qualquer modo inferior ao alcance dos binóculos dos vigias. Ora os testemunhos são formais: Bottineau descobria a presença dos navios muito antes destes últimos.
Era então uma miragem? Era uma das hipóteses de Bernardino de Saint-Pierre e, depois dele, de certos escritores científicos. Mas uma miragem produz-se em circunstâncias fortuitas e bem determinadas. No mar, nomeadamente, é preciso que a água seja mais quente do que o ar. É inconcebível que essas condições tenham sido produzidas durante todas as observações de Bottineau – uma quinzena de anos. A hipótese da miragem, ou em rigor, da observação do voo das aves, não pode ser considerada senão em casos muito precisos.
Resta uma outra explicação: a do próprio Bottineau na sua Nauscopia . Sublinhemos bem que ele não afirmava ver os navios mas somente os meteoros que se encontravam em redor deles. Mas o que são exactamente esses meteoros que têm forma, cor, consistência? É preciso confessar que o que nos diz Bottineau nos deixa perplexos. Lendo bem as suas explicações, não chegamos a compreender a natureza exacta desses meteoros. A conclusão será que, mesmo se a acuidade visual de Bottineau fosse normal, a retina dos seus olhos seria extremamente sensível a certas colorações, a certas estruturas da atmosfera.
(…) Na obra Invisible Horizon, Vincent Gaddis expõe uma teoria sedutora, por muito que seja frágil. «As observações de Bottineau», escreve ele, «eram não de carácter objectivo, mas subjectivo. Os “meteoros” consttituem projecções do seu próprio espírito.» Por outras palavras, Bottineau tinha poderes de vidência e a essa vidência completamente interior, ele dava inconscientemente uma aparência física.
O caso Bottineau continua a ser para nós, como para os seus contemporâneos, um enigma por resolver. No entanto, faz aparecer um desses sonhos incensatos como por vezes o mar suscita. O sonho dos homens, a quem a luta quotidiana com ele teria conferido um pouco dos poderes mágicos que lhe concedemos.
F I M

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